
Publicado em 1864, Memórias do Subsolo é considerado um dos textos mais influentes de Fiódor Dostoiévski e um precursor do romance psicológico e existencialista. A obra foi escrita pouco após a morte da primeira esposa do autor e de seu irmão Mikhail, em um momento de dificuldades financeiras e de reflexão intensa sobre a condição humana. Inserido no contexto da Rússia do reinado de Alexandre II, período marcado por reformas como a emancipação dos servos em 1861 e pela ascensão das ideias racionalistas e utilitaristas vindas da Europa Ocidental, o romance surge como uma reação crítica ao otimismo progressista do século XIX. Dividido em duas partes, apresenta um narrador sem nome, conhecido apenas como “homem do subsolo”, que vive isolado em São Petersburgo e se dedica a dissecar, com ironia e amargura, as contradições do ser humano.
Na primeira parte, o narrador expõe sua filosofia de vida, marcada pelo ceticismo, pelo ressentimento e pela rejeição às concepções deterministas de que a razão e a ciência poderiam resolver todos os problemas da humanidade. Ele afirma que o homem é capaz de agir contra seu próprio interesse apenas para afirmar sua liberdade, contestando o ideal iluminista de que o ser humano busca sempre o bem e a lógica. Essa postura antecipa temas centrais do existencialismo, como a angústia diante da liberdade e a recusa de sistemas morais absolutos. A escrita é marcada por um tom confessional e fragmentado, que cria a sensação de um diálogo tenso entre narrador e leitor.
Na segunda parte, mais narrativa, o “homem do subsolo” relata episódios de sua juventude que ilustram suas ideias e ressentimentos, incluindo encontros humilhantes com antigos colegas e a relação conflituosa com a prostituta Liza. Esses episódios revelam a incapacidade do narrador de se conectar autenticamente com os outros, ao mesmo tempo em que expõem sua consciência aguda de suas próprias falhas morais. Publicado inicialmente na revista Epokha, o romance influenciou profundamente escritores como Kafka, Camus e Sartre, por sua exploração radical da psicologia humana e por questionar as bases da moralidade e do progresso. Memórias do Subsolo permanece como um texto essencial para compreender as tensões entre razão, liberdade e autodestruição, que atravessam tanto o século XIX quanto a modernidade.
No responses yet