A construção de personagens humanos — complexos, contraditórios e verossímeis — é resultado tanto de escolhas criativas quanto de tradições literárias que evoluíram ao longo dos séculos. No século V a.C., Sófocles, na tragédia Édipo Rei, já explorava falhas e dilemas morais para criar empatia e tensão dramática. No século XIX, em meio ao Realismo e Naturalismo, movimentos influenciados pela Revolução Industrial e pela observação científica do comportamento humano, escritores como Fiódor Dostoiévski (Crime e Castigo, 1866) e Machado de Assis (Dom Casmurro, 1899) lapidaram técnicas que ainda hoje guiam a criação de personagens convincentes.

Uma das técnicas centrais é a contradição interna. Personagens humanos raramente têm objetivos e emoções totalmente alinhados; o conflito entre querer e temer, amar e odiar, agir e hesitar cria profundidade psicológica. Um exemplo seria: “João sonhava em pedir demissão, mas todo dia chegava cedo ao trabalho, como se estivesse preso por correntes invisíveis.” Essa tensão mantém o leitor interessado porque reflete dilemas da vida real.

Outra técnica é a vulnerabilidade. Mostrar falhas, fragilidades e inseguranças aproxima o personagem do leitor, que reconhece nele traços de si mesmo. Em O Estrangeiro (1942), Albert Camus apresenta um protagonista apático e deslocado, cuja incapacidade de reagir emocionalmente às situações o torna paradoxalmente mais humano. Um exemplo prático seria: “Clara encarou a pilha de contas sobre a mesa. O café esfriava na xícara, mas ela não se movia. O medo silencioso de abrir mais uma carta a mantinha imóvel.”

A terceira técnica é o gesto significativo — pequenos detalhes de comportamento que revelam camadas de personalidade. Anton Tchekhov, no final do século XIX, defendia que uma ação simples podia substituir páginas de descrição psicológica. Por exemplo: “Ao falar do pai, Pedro ajeitou o relógio no pulso três vezes, como se tentasse ganhar tempo antes de responder.”

A quarta técnica é a memória e o passado. Inserir lembranças ou eventos passados que influenciam escolhas presentes dá coerência e densidade emocional. Em Dom Casmurro, Machado de Assis usa o viés da memória para deixar dúvidas sobre a veracidade do narrador, tornando-o mais complexo.

Por fim, a quinta técnica é a incoerência ocasional, pois pessoas reais não agem de forma previsível o tempo todo. Pequenas quebras de padrão tornam o personagem menos artificial e mais próximo da vida real.

Ao aplicar essas técnicas — contradição interna, vulnerabilidade, gesto significativo, memória e incoerência — o escritor constrói figuras literárias que respiram e se movem com naturalidade dentro da narrativa, criando vínculos emocionais duradouros com o leitor.

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